Uma das constantes universais na análise do imperialismo e das relações internacionais entre poderes é deitar a culpa de todos os problemas sobre os Estados Unidos, particularmente quanto mais exótico for o cenário. É certo, por uma parte, que uma análise assim pode ser facilmente acusada, à partida, de pouco apurada, de simplista ou até de consignista, porque algo de todo isso tem, com efeito. Mas também é certo que para uma constante universal ser efectivamente universal deve estar presente, salvo paradoxo, em todas as equações. E nesse sentido, também é verdade que, salvo esses paradoxos — que os há — nada ou quase nada se pode analisar no marco das relações internacionais sem passar polos Estados Unidos ou, melhor dito, polas oficinas dos seus grandes agentes económicos e de interesses. Suspeitar, como premisa de partida, a implicação direta de Wall Street, do Pentágono, do Capitólio e da Casa Branca em qualquer guerra aberta ou encoberta que se queira analisar no planeta não resulta, no fim das contas, tão simplista e consignista como pudesse parecer se se atende ao modo como esses agentes económicos têm globalizado os seus interesses particulares. E, nesse sentido, é a história e a constatação que nos oferece de cada um dos acontecimentos, a que nos permite assinalar os Estados Unidos por trás da dor e do fumo nos casos da Líbia, da Ucraína, da Síria ou da Palestina, e também dos ataques por toda a América do Sul e ao longo e largo da África, mesmo quando a imprensa autoproclamada «séria» teime em apontar em outras direção.
Mas não é só do ponto de vista da análise feita desde fora que isto se verifica. Também na análise feita desde dentro, desde as sés dos próprios agentes estado-unidenses envolvidos na mecânica do imperialismo e na direção das operações. Em ocasiões, polos vistos, até se produzem pequenas concessões, breves episódios de honestidade. Aconteceu há pouco, em 31 de Maio passado, numa entrevista no programa «Face the Nation» da CBS News. Nela, o diretor da CIA John Brennan deixava transparecer uma espécie de confissão nunca — ou quase nunca — antes reconhecida. A pergunta não tinha qualquer maldade: estava enunciada para que a resposta fosse, invariavelmente, reforçar a figura do presidente Barack Obama — por sinal, Nobel da Paz. Em concreto, o apresentador perguntava Brennan pola aparentemente pouca implicação de Obama na «guerra contra o terror».
A resposta do diretor da CIA começou por negar a premissa básica da pergunta — tal como esperável — e passou depois a oferecer alguma escusa, como o reconhecimento de «o Iraque, o Irã, a Síria, o Iémen, a Líbia e outros cenários serem alguns dos mais complexos» que ele próprio tinha visto em trinta e cinco anos de carreira no negócio da segurança. Até aqui, nenhuma novidade. O interessante veio justo depois, quando disse, como se pensasse em voz alta: «devemos reconhecer que em ocasiões a nossa participação e o nosso envolvimento direto [nesses cenários] irão estimular e encorajar desafios aos nossos interesses de segurança nacional».
Nunca até esse momento, a CIA, um dos principais braços executores dos interesses do grande capital norteamericano, tinha reconhecido — ainda, por meio de oficial senior — que as atividades contra-terroristas dos EUA pudessem estar, quando menos em parte, no cerne dos surtos de «violência» contra os próprios Estados Unidos. Lançar, desde dentro, um argumento assim não é uma questão menor. Significa que, nas mesas de análise, os Estados Unidos devem ser cientes do efeito que produzem as suas ações no exterior, tanto as claramente ofensivas como também — e aqui está o cerne da questão — as pretensamente defensivas. Outra cousa é, claro, o discurso público que se venha explicitar nos meios de comunicação e nos geradores de opinião, nos que cada operação é celebrada sem fissuras e apoiada como a única via possível para assegurar a tranquilidade em casa.
Em todo caso, falta por ver se, à margem do discurso público monolítico, essa certeza «técnica» se traduz em algo plausível ou se tudo continua na mesma, tal como parece. No fim das contas, não é a primeira vez que Brennan protagoniza uma dessas fugas de honestidade (foi ele quem chegou a admitir publicamente «extralimitação» dos agentes da CIA nos interrogatórios) sem que nada, absolutamente, tenha mudado a partir daí. Mais uma prova de que o imperialismo não depende de quem o executa, mas dos interesses que o dirigem, e de que quando o que está em jogo são posições geoestratégicas ou o controlo de recursos convém ir muito além do relato que nos oferece o exército mediático e avançar deixando-se guiar pola lógica do capital, que é o motor último, e que o próprio Marx se encarregou de deixar perfeitamente ressumida em O Capital: «O capital tem horror à ausência de lucro. Quando fareja um benefício, o capital torna-se ousado. A 20% fica entusiasmado. A 50% é temerário. A 100% enlouquece à luz de todas as leis humanas. A 300% não recua diante de nenhum crime».