Uma nova intifada que não se produz por acaso

Dizem-nos por toda a parte, a todas as horas e por todos os meios que palestinianos entolecidos apanharam os cutelos das suas casas e se dedicam agora a apunhalar judeus polas ruas. Ao mesmo tempo, Benjamin Netanyahu oferecia, há apenas uns dias, delirantes revelações sobre o Holocausto, segundo as quais o mufti de Jerusalém durante a Segunda Guerra Mundial, Amin al-Husseini, teria pedido a Hitler a chamada «solução final». A maioria dos meios de comunicação, alertados pola estupidez do primeiro ministro israelita, relativizaram as suas palavras e ruborizaram-se diante das evidências. Mas fizeram-no ao mesmo tempo que davam todo o crédito às agências de notícias do sionismo e repetem, dia a dia, os seus destaques e manchetes. A realidade, por enquanto, parece ir por outra parte, como de costume.

Como já cansa repetir que a «solução final» na Alemanha nazista não só levou por diante judeus, como também homossexuais, ciganos, comunistas e toda quanta dissidência conseguiu atingir; e como as besteiras de Netanyahu caem polo seu próprio peso e polas ligações — que essas sim existiram — entre os sionistas de Herzen e o NSDAP, convém não perder nem um minuto mais nisto. Não é casual, por enquanto, que o chefe do governo de Israel recupere esta mentira já empregada pola primeira vez em 2012 justo em meio à habba (insurreição) palestiniana destas semanas nos Territórios Ocupados e Jerusalém Leste, configurada como uma intifada com uma direção política difusa — ou quando menos muito mais difusa do que as duas anteriores. Fazê-lo assim evidencia a estratégia sionista de privar de motivações e causas à resposta palestiniana, e apresentá-la como um surto de puro ódio religioso, onde o aparato da propaganda de Israel se sente à vontade invocando, mais uma vez, o argumento cansativo do antissemitismo. E, porém, causas e motivos há, sobradamente, para a resistência palestiniana por todas as vias, incluída a via armada.

Não são só a histórica ocupação e mais as agressões sistemáticas e planificadas através das quais é desenvolta, os assentamentos ilegais, os mais de um cento de check-points que fendem um território palestiniano cada vez mais descontinuado e, portanto, menos coeso — nessa política ruim que tenta destruir um povo por meio da destruição do seu território. Tampouco são o apartheid, a negação dos direitos civis e humanos, as detenções arbitrárias e a guetização dos bairros ainda não ocupados pola expansão sem fim dos colonos; nem ainda a expulsão das casas, o roubo de terras e a impossibilidade prática de desenvolver qualquer atividade económica. Isto todo, e outras cousas, fazem parte do dia a dia da população palestiniana, e estavam já presentes nesses últimos vinte anos nos que o projeto sionista de limpeza étnica (para atingir a sua mítica «terra sem povo») continuou a expandir-se com relativa tranquilidade, inclusive durante os consecutivos episódios de barbárie das suas FDI (o exército israelita) contra Gaza, que mobilizaram todo o planeta.

A resposta palestiniana, mediada por um bloqueio selvagem, a tiros, à bomba, foi sempre a de procurar instâncias de negociação, resoluções internacionais que depois Israel desouviu de jeito flagrante e sem consequências, e a solidariedade dos povos. E mesmo quando a sua resposta foi violenta, nesses últimos anos, foi-o com uma intensidade desproporcionadamente baixa em relação à potência militar israelita. As cifras de pessoas mortas e feridas, e as de prédios e instalações destruídas num e noutro lado dos muros não deixam lugar a dúvidas. Por isso berrávamos nas ruas, há apenas um ano, durante o último assédio a Gaza, que aquilo não era uma guerra, que era um genocídio. 

O quê acontece agora, então, para que a resposta esteja a ser o ataque individualizado com cutelos, desparafusadores e coquetéis Molotov? A maioria dos meios situam a origem desta intifada nas razzias das FDI contra a esplanada das mesquitas de Jerusalém, onde se encontra a mesquita de al Aqsa, o terceiro centro sagrado do mundo árabe. Sem embargo, as motivações religiosas não parecem ser as únicas, nem sequer as principais, e as condições para o conflito, sem dúvida, são bem anteriores. A resposta não é simples; bem ao contrário. Além do conflito religioso — que existe, em qualquer caso — as causas parecem ter a ver, em primeiro lugar, com o fracasso manifesto dos acordos de Oslo assinados em 1993 por al Fatah, o partido do presidente palestiniano Mahmoud Abbas, que desde então tem perdido rapidamente a hegemonia política, uma grande parte da sua legitimidade e inúmeros apoios, de jeito particular entre a mocidade dos bairros mais empobrecidos, contra a que tem praticado também uma política de desmobilização (ou ainda de repressão, segundo as fontes) rechaçada por Hamas e pola FPLP, entre outras organizações.

Que os acordos de Oslo, com os que se dava por finalizada a guerra contra o sionismo, apenas serviram para acelerar o expansionismo de Israel é uma evidência hoje para qualquer pessoa na Palestina, com independência da sua filiação política. Como também o é — eis a segunda causa central — que a Autoridade Nacional Palestiniana, isto é, o governo (de Fatah) reconhecido por Israel a diferença do governo (de Hamas) de Gaza, não tem servido para impedir ou sequer minorar todas as formas de ataque já referidas acima. Ao contrário, as operações militares sionistas desde a segunda intifada em 2000 — Escudo Defensivo, em 2002; Chumbo Fundido, em 2009; Pilar Defensivo, em 2012 e Margem Protetora, em 2014 — também se têm acelerado, numa progressão de pesadelo.

O crescimento rápido da miséria, só explicável polo recrudescimento das condições materiais e objetivas de vida, e mais a falta de qualquer liderança política confiável são, no fundo, as motivações principais para uma estratégia de confronto armado que também não apareceu de repente, mas ao contrário: que se foi alargando nos últimos anos de forma paulatina e constante. Segundo dados do Shin Bet, a principal instituição de segurança de Israel — nada suspeitosa de ser pró-palestiniana —, em 2011 registaram-se 320 «ataques»; 683 em 2012, 1.271 em 2013 e 1.834 em 2014.

Finalmente, não faz falta dizer que Israel não tem qualquer interesse em considerar estas causas objetivas, polas quais as suas políticas de expansão e apartheid são as únicas responsáveis. Prefere, antes, recorrer ao habitual discurso do terror religioso, mesmo se para isso tem que levar adiante ataques de falsa bandeira como o do colono israelita que, oculto com um passa-montanhas, atacava em 23 de outubro um rabino num assentamento da Cisjordânia. São «ataques» como este, em meio às ações reais e deslocalizadas que protagonizam homens e mulheres jovens da Palestina, os que Israel e as suas agências de imprensa empregam para se apresentar como vítimas de uma loucura extremista islâmica. Nada mais longe da realidade. A «intifada dos cutelos», como pode acabar sendo conhecido para a história este episódio de resistência à ocupação, não se produz por acaso. Ao contrário, tem motivos, e são bem poderosos.

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