Mais um episódio de terror jiadista na Europa, desta volta em Manchester, num concerto que congregava milhares de moços e crianças e no que outro moço, de vinte e três anos -Salman Abedi- decidia fazer estourar uma bomba nos corredores que ligam o Manchester Arena com a estação de comboios Vitória. Isto foi o que a grande imprensa nos contou justo antes de nos assolar com detalhes ínfimos e irrelevantes sobre a desfeita, as vítimas e a biografia do rapaz, estabelecendo uma linha de culpabilidades que pode ser certa ou não, mas que o que explica é absolutamente nada. As tragédias são terreno abonado para o amarelismo e o sensacionalismo que, pola sua vez, são as alavancas da resposta rápida e em quente, sem qualquer reflexão. Mas essa reflexão deve ser feita, porque, de outro modo, o resultado é que não aprenderemos nada e os atentados continuarão repetindo-se à porta de casa.
Limitar a narração do atentado a esses detalhes miúdos e vazios de significado real ou útil para entendermos o que aconteceu serve para encher páginas de jornais e minutos de televisão e rádio. Mas, sobretudo, serve para marcar um limite que bloqueia as explicações de contexto e subordina tudo ao conjuntural, talvez com alguma referência ao que está a acontecer no Oriente Médio, mas sempre uma referência vaga, como uma nota de rodapé ou um fundo de tramóia. Urge, em troca, mirar o contexto; abandonar a ideia de que a guerra no Oriente Médio é um fundo sobre o que se projeta o drama europeu, e começar a apostar por uma inversão de planos que deixe atrás a conjuntura e se centre no estrutural. O drama não é a Europa com um fundo oriental. O que verdadeiramente está em cena é o que acontece na Síria, no Iraque, no Líbano, na Líbia ou na Palestina — e os atentados de Manchester, de Londres, de Berlim, de Niza, de Bruxelas ou de Paris, sem deixar de serem terríveis e repulsivos, são apenas epílogos lógicos, como um spin off assustador, do papel que as potências do Atlântico Norte estão a jogar no cenário principal.
Culpar o Estado Islâmico ou al-Qaeda dos atentados que reivindicam (mas que quase sempre cometem grupos muito reduzidos ou indivíduos sem ligação direta para estas organizações) resulta hipócrita se antes disso nos temos dedicado a fornecê-los com armamento, financiamento, adestramento e, sobretudo, com espaço político e tempo para crescer e se desenvolver, deixando de ser grupúsculos salafitas e takfiris para se converterem em verdadeiras ameaças globais. E isso é o que as potências ocidentais têm feito no Iraque e na Líbia, que até então tinham demonstrado uma enorme eficácia na hora de perseguir o integrismo religioso e impedir que medrasse, mas que, agora, convertidos em buracos negros sem lei nem quem a assegure, servem de retaguarda para o jiadismo, nos seus múltiplos nomes. E a teima ocidental em remover o governo de Bashar al-Asad vai polo mesmo caminho. O papel dos países da UE e dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU a assegurarem que há «rebeldes bons» na Síria é outra maneira, a última, de dar espaço ao monstro. Sobretudo quando esses mesmos países do Conselho são incapazes de os identificar e separar dos que seriam, reciprocamente, os «rebeldes maus», contra os que seria legítimo agir. Ora, se com uma mão fazemos todo o possível para lhes dar opções de derrubar o governo de al-Asad -porque esse era o objetivo inicial nesta guerra proxy- e com a outra nos laiamos quando lançam os seus ataques diante das nossas casas à procura de uma resposta quente que implique a invasão da Síria por parte da NATO e a eliminação do seu governo —, então só cabem duas possibilidades. Ou é que acreditamos patologicamente na literalidade daquilo de não deixarmos à mão direita saber do que faz a esquerda; ou então é que as lágrimas são apenas um exercício dramatúrgico. Uma falsidade catártica e até terapêutica, mas uma falsidade, no fim das contas. Mesmo assim, essa é a aposta dos poderes públicos, incapazes de reconhecer o verdadeiro papel que levam anos a jogar na reconfiguração da região pola força, e dispostos unicamente a acelerar a fugida para a frente reforçando as medidas securitárias em casa — câmaras nas ruas, armamento letal para polícias, escutas telefónicas, espionagem dos nossos e-mails e redes sociais à procura de qualquer indício, etc. Jogar tudo a essa carta é como limitar-se a prescrever antipiréticos para a febre e deixar a infeção continuar livremente estendendo-se polo corpo. E, sobretudo, demonstra que, efetivamente, não aprendemos nada -se é que o nosso verdadeiro objetivo é que não volte acontecer.