Turquia parabellum

A situação no Curdistão norte (Bakur) continua a piorar dia a dia. Assim dito, parece que se recorre ao tópico; mas os tópicos costumam ser construídos desde uma realidade recorrente. E o pioramento das condições objetivas de vida nessa grande área curda não deixa de ir a mais. Os motivos, que normalmente também são diversos, reduzem-se, neste caso, apenas a um: a decisão do governo turco de abandonar o processo de paz que nos últimos dous anos tinha permitido, quando menos, reduzir quase a zero o número de mortas após enfrentamentos com as forças de segurança da Turquia.

A decisão de Ancara de regressar ao clima de agressões sistemáticas foi tomada justo antes das eleições gerais de junho. O governo ordenou mais de 170 ataques contra sedes do Partido da Democracia dos Povos (HDP) — a aposta curda para, naquelas eleições, atingir o incrível 10% necessário para entrar no parlamento turco—, incluídos ataques à bomba, como em Mersin, Adana ou Amed (a capital curda, Diyarbakır em turco). O objetivo não era outro que impedir o que finalmente se verificou: a grande vitória do HDP ao atingir 13% do voto e se tornar hegemónico no Bakur.

A resposta do governo em funções de Recep Tayyip Erdoğan não demorou. Argumentando a impossibilidade de formar governo — um argumento espúrio e falso, mas muito útil naquele momento — volveu convocar eleições para novembro, e desenvolveu um duplo jogo: com a mão direita continuava a espancar o HDP por meio de novos ataques e mesmo massacres como o da manifestação festiva do HDP em Ancara que terminou com mais de um cento de pessoas mortas e 400 feridas, ou o de Suruç, que matou 33 membros de um comboio humanitário que se dirigia a Kobanê; enquanto com a mão esquerda se mostrava como única opção capaz para negociar a paz com o «terrorismo curdo» e poder volver a se ocupar das necessárias reformas no país, acossado por uma profunda crise económica.

As eleições arranjadas de 1 de novembro, denunciadas por mais de 300 observadoras internacionais — entre as quais uma delegação galega enviada por Mar de Lumes — e mesmo pola PACE e a OSCE, confirmaram a estratégia de Erdoğan, que incrementava o seu poder; mas ao mesmo tempo revelaram-na como insuficiente. É certo que o candidato governamental, Ahmet Davutoğlu, o homem de palha de Erdoğan, ganhava por ampla maioria (49,50%) e que polarizava o país; mas também é certo que a maioria resultava insuficiente para as reformas constitucionais de caráter presidencialista que Erdoğan levava anos a desenhar, com o objetivo de converter o país num novo sultanato.

A resposta ao «problema curdo» também não demorou nesta ocasião. Desde o dia seguinte das eleições foi reforçada a estratégia de castigo à população nas províncias do Bakur. A cidade de Silvan (em curdo, Farqîn) — com uma população pouco maior do que a de Vila Garcia de Arousa, por exemplo — permanece ocupada por forças especiais da polícia turca, com toque de recolher incluído, impedindo as pessoas saírem das suas casas, colocando tanques à entrada da cidade a apontar para os bairros residenciais, dispondo francoatiradores nos telhados e fazendo que helicópteros do exército sobrevoem continuadamente as casas. O deputado eleito por essa circunscrição, o curdo Ziya Pir, do HDP, foi impedido de entrar à cidade e revelou que, em conversa com o ministro do interior, a única resposta que obteve foi que o governo se dispunha a «limpar» aqueles bairros.

O caso da cidade de Silvan/Farqîn não aparece nos meios de comunicação, que no momento em que se conheciam os resultados das últimas eleições se apressavam a assegurar que a normalidade voltava à Turquia e que a responsável polo fracasso do HDP era a estratégia de confronto do PKK — um PKK que era, com efeito, a única das partes que respeitava o cessar-fogo; que, de facto, era a parte que o tinha promovido para não interferir nas eleições; e que, por certo, é a única que tem o seu negociador principal, Abdullah Öcalan, encarcerado polo Estado num regime de isolamento. Mas não são apenas os meios jogaram a desconhecer a realidade. A mesma União Europeia que, através do seu PACE (Assembleia Parlamentar do Conselho de Europa), reconhecia as enormes dúvidas a respeito da limpeza das eleições turcas, vem de promover acordos do mais alto nível com a Turquia, acelerando o seu processo de incorporação à UE em troca de um papel mais duro de Ancara na chamada crise das refugiadas. E não só. O G-20 escolheu a cidade turca de Antália para a sua reunião de 15-16 de novembro, reforçando assim a posição de um governo que no quintal traseiro e enquanto essa reunião tenha lugar estará a matar curdas e curdos numa operação com demasiados precedentes.

Urge hoje, mais do que nunca, desmascarar o governo turco. Serve para isso caraterizá-lo como fascista, sem qualquer exagero, sem que se trate puro consignismo. O governo turco é fascista porque o partido que o sustenta, o AKP, se revela assim nas suas ações, quando castiga e trata de «limpar» áreas de maiorias não-turcas, quando empece o desenvolvimento normal do povo curdo, quando recorre ao terrorismo de Estado e às suas cloacas para atacar os seus inimigos políticos, quando bloqueia pola força o exercício de qualquer liberdade de expressão que não seja a liberdade para repetir os seus argumentos, e quando ordena todo tipo de operações e práticas para se impor numas eleições que lhe confiram respeitabilidade e poder continuar adiante com os seus projetos de uniformização cultural e social. Convém notá-lo: o fascismo não sempre chega em forma de golpe de Estado. Hitler foi eleito na Alemanha em 1933. E tampouco se trata de comparar Erdoğan e Hitler. Seria estúpido, além de uma barbaridade historiográfica. Mas as evidentes diferenças não podem ocultar a realidade: a Turquia é hoje um Estado ao serviço de uma ideia ultraconservadora e uniformizadora, à procura de um poder unipessoal tal que faz com que falar de sultanato não seja qualquer figura literária, mas uma projeção realista; e que tem, no seu interior, minorias nacionais (não só a curda, sendo a mais numerosa) que têm os seus direitos civis conculcados com a cumplicidade dos grandes poderes político-militares do planeta.

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