Este 5 de maio cumprem-se 200 anos do centenário do nascimento de Karl Marx. Em 1995 Balibar confiava em que no século XX a sua obra seguisse a ser lida nom como um autor do passado, senom plenamente contemporáneo. Só um ano depois do centenário da revoluçom soviética de Outubro, o bicentenário de 2018 apresenta-se como um momento propício para profundizar na leitura de Marx, no que em realidade a commemoraçom funciona como escusa para atender umha necessidade actual e premente.
Tentar resumir o pensamento de Marx nas dimensons deste artigo seria à vez inútil e contraproducente, mas si podemos deixar algumhas anotaçons de releváncia para o presente. Num treito do Capital explica-se que toda a ciência seria supérflua se a essência e a forma de aparecimento das cousas coincidesem imediatamente. A sociedade capitalista nom se apresenta à si mesma como um regime baseado na exploraçom, condenado a crises recorrentes e cada vez mais violentas, e fundamentado na violência, senom como um mundo de trabalhadoras livres que desenvolvem as suas habilidades por um preço pactuado no mercado. Marx foi capaz de atravessar as aparências, mas no nosso contexto actual estas seguem a encobrir umha realidade profundamente contraditória; as causas da misséria, as desigualdades ou a violência som frequentemente reduzidas a decisons individuais, à má fortuna geográfica daquelas que nacem em lugares “especializados em perder” — como diria o Galeano — ou mesmo a deficiências no funcionamento do mercado que se solucionarám com “mais mercado” e mais liberalizaçom.
E sem embargo nom parece tam doado ocultar que na nossa época agigantaram-se algumhas das principais contradiçons sinaladas por Marx: existem gigantescas riquezas materiais, que som acumuladas por umha minoria e nom permitem a imensa maioria da povoaçom mundial viver alheia à loita pola supervivência. Nom só estamos moi longe do passo da humanidade — em expressom de Engels — do reino da necesidade ao reino da liberdade, no que homens e mulheres decidem a sua história com plena consciência, senom que existem ameaças de dimensons incalculáveis. No nosso país é evidente o empobrecimento popular, a extensom do desemprego e a precariedade, nomeadamente na mocidade, a existência de necessidades sociais urgentes em vivenda ou mesmo alimentaçom e mesmo a progressiva precarizaçon dos serviços sociais, de saúde e educaçom. A nível internacional, podemos constatar a expansom do neoliberalismo, o aumento da agressividade do imperialismo, e mesmo a coexistência de crises de profundidade — energética, climática, alimentária — que interactuam e podem empiorar-se entre si.
Mas qual é a essência? O capitalismo é por definiçom um sistema atravessado por crises recorrentes e cada vez mais violentas, mas isto nom implica, como a história demostrou até agora, o seu colapso automático; polo contrário, tende a buscar as soluçons que garantem a sua supervivência. Nas últimas décadas, enfrontado contra um estancamento crónico que apenas pode maquilhar, impuxo um novo patrom de acumulaçom que implica maiores padecementos para a classe trabalhadora, caracterizado pola reestruturaçom e sobreexploraçom do trabalho. As vindeiras décadas só poderiam trazer umha aceleraçom deste processo, no meio de crises mais violentas e recorrentes.
Umha boa parte da povoaçom pode entender, intuitiva e empiricamente, que a situaçom laboral e social nom vai oferecer melhores alternativas; que o sistema político, no que há tempo que a socialdemocracia está completamente assimilada ao neoliberalismo, está desenhado para o benefício do grande capital e nom atende nengumha consideraçom popular; que jamais foi maior a concentraçom do capital numhas poucas corporaçons ou milhonários que acumulam mais riqueza que países inteiros; que existem riscos a medio praço que degradam o planeta e podem empiorar significativamente as condiçons de vida da maior parte da humanidade. Se estas som as condiçons, dispomos de verdade das ferramentas para as interpretar e transformar? Vive Marx e o seu pensamento entre nós? É algo mais que um autor morto há muito tempo, que um nome que acompanha algus títulos — O Manifesto, O Capital — muito mais conhecidos que lidos, que umha imagem nos livros de história? Está Marx presente no nosso país, nos empobrecidos, nas dessempregadas, nas precarizadas, nas expulsadas da sua vivenda ou do sistema educativo?
A morte do marxismo foi decretada já milhons de vezes, tanto polas correntes que alegam que sempre partia de premisas erradas como por aquelas tendências que reconhecem a sua validez para o capitalismo decimonónico ou de começos do século XX, mas advertem da sua obsolescência ou da sua incapacidade para detectar e construír alternativas às mutaçons do imperialismo neoliberal. Como tem sinalado Meiksin Woods, mesmo parte da esquerda, e até chamada marxista, renunciou à luita de classes, tanto como explicaçom do processo histórico quanto como objetivo a superar por meio da revoluçom, o que contribui enormemente a ampliar a ausência de Marx e multiplicar as presenças das pantasmas do capital. Mas estas disposiçons, entre a derrota e o passamento, som tam erradas como ignorantes do coraçom da crítica marxista e nom rematam em mais lugares que a aceptaçom passiva do capitalismo ou a declaraçom da sua reforma como único horizonte possível.
Frente a aqueles que consideram obsoleto o marxismo ou proponhem preteri-lo para o futuro em atençom às tarefas consideradas “urgentes”, sempre é tempo de tomar Marx a sério, assim como o conjunto do legado do movimento socialista. Devemos suscitar certa provocaçom intelectual, atravessar também as aparências do nosso tempo e inverter a lógica que assegura, implicita ou explicitamente, que nom é o momento de estudar nem aplicar Marx. De facto, o marxismo é a única teoria que pode oferecer explicaçons para a grande transformaçom capitalista que estamos a viver nas últimas décadas, que apenas pode tentar ocultar umha crise sistémica e estrutural. Construír o socialismo, sem nos deixar abater pola correlaçom de forças imediata, nom é assim arqueologia política nem historicismo, senom umha tarefa actual para as comunistas que actuam na Galiza do século XXI, umha necessidade se nos queremos liberar do maior assassino da história.
Ademais, o marxismo nom é só umha interpretaçom crítica das projecçons históricas do capitalismo, senom também umha filosofia de combate, e umha alternativa prospectiva que pretende transformar o mundo através da revoluçom. Este sistema social nom só é histórico e contingente, senom que pode ser superado. Nem o estudo de Marx, mais contemporáneo do que nunca, nem o jogo irresponsável da cita descontextualizada, poderia liberar-nos das nossas próprias tarefas e responsabilidades históricas, que começam pola construçom dum partido revolucionário. A memória e a revitalizaçom de Marx, se som auténticas, só podem viver num único lugar: na loita de todos os povos do mundo polo socialismo.