“Apesar das revisões constitucionais, a herança do 25 de Abril permanece não apenas na memória colectiva, mas também no plano sociopolítico”
Em 2014 cumprem-se 40 anos da famosa Revolução dos Cravos. O 25 de Abril terminou com a ditadura e introduziu mudanças radicais na vida legislativa e política do país vizinho antes de ser traída covardemente pelo PS e quem depois veio ocupar as instituições. Desta volta, falamos sobre aquela revolução, sobre o que continua dela e sobre as perspectivas, com Ana Saldanha, investigadora literária que conta com vários trabalhos publicados sobre a Revolução de Abril.
Existiram realmente opções de produzir uma mudança radical da sociedade? Havia alguma ligação entre militares, organizações políticas e povo que pudesse dar algum fruto nesse sentido?
A Revolução de Abril foi um processo muito complexo. Tudo começou na noite de 24 de Abril de 1974, com um levantamento militar levado a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). A este levantamento militar juntaram-se forças populares, sendo que é desta junção – levantamento militar e levantamento popular – que nasce a Revolução. Ora, quando os capitães de Abril, organizados no MFA, dão a conhecer ao país os seus objectivos – o fim da ditadura e o fim da guerra colonial, com a consequente e necessária construção de um Portugal democrático –, forças progressistas e organizações políticas progressistas e revolucionárias logo dão o seu apoio ao MFA. Porém, a classe que havia dominado durante os 48 anos de fascismo em Portugal e que via os seus interesses atacados, opõe-se de imediato ao processo revolucionário, desestabilizando a tentativa de construção de um Portugal democrático, não apenas a partir do exterior do poder político (envio de remessas para o estrangeiro, destruição de campos e de gado), mas igualmente a partir do seu interior. O processo revolucionário desde logo se polariza. Opõem-se, assim, por um lado, as forças progressistas e revolucionárias que pretendiam a alteração do modo de organização socioeconómico do fascismo (terrorismo de Estado ao serviço dos monopólios), com vista à construção de uma sociedade socialista – e, neste sentido, falamos de uma ruptura – e, por outro, de for- ças que ora pretendiam a continuação da ditadura, com apenas umas ligeiras mudanças «liberalizantes», ora pretendiam a instauração de uma democracia burguesa, na qual a classe dominante permaneceria a mesma, mas sob uma organização política parlamentar representativa. A polarização ideológica acentuou-se ao longo do período que se estende do 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975. Durante este período, as tentativas de reverter o caminho revolucionário que o Movimento das Forças Armadas, forças populares e organizações progressistas e revolucionárias levavam a cabo (das quais destaco o Partido Comunista Português), foram várias (28 de Setembro de 1974, 11 de Março de 1974 e, por fim, 25 de Novembro de 1975). O processo revolucionário foi, assim, o resultado de uma luta constante entre facções e ideologias com diferentes objectivos político-sociais: por um lado, o PCP e os sectores mais progressistas do Exército e da população aspiravam a uma democracia em Portugal ao serviço de todos os trabalhadores; por outro lado, o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), com o apoio da grande burguesia nacional e estrangeira, pretendiam a constituição de uma organização política ao serviço desta, e por ela dominada. Apesar dos avanços revolucionários – nacionalização da banca, reforma agrária, novos direitos laborais, participação popular nos processos decisórios, liberdade sindical, liberdade de organização e de filiação política, entre outras – as forças contra-revolucionárias conseguiram travar o processo revolucionário, a 25 de Novembro de 1975. Claro que as conquistas revolucionárias não foram eliminadas logo após o 25 de Novembro, uma vez que as forças populares e as organizações progressistas e revolucionárias que apoiaram a Revolução permaneciam com uma grande influência social e com representação política. Estas conquistas foram, contudo, sendo eliminadas progressivamente, ao longo dos últimos 40 anos, num processo de retrocesso social e civilizacional que se prolonga até aos dias de hoje.
Em que momento se produz a contra-revolução e quais foram as chaves da sua vitória sobre a fase revolucionária?
As tentativas contra-revolucionárias fazem-se sentir desde a madrugada do dia 25 de Abril. A Junta de Salvação Nacional – mandatada pelo MFA e formada para dirigir, provisoriamente, Portugal, tal como previsto no Programa do Movimento – representava a hierarquia militar, e os seus membros não pretendiam uma participação popular na vida política do país. O General António de Spínola, nomeado seu Presidente, tinha diferendos com o fascismo, porém não pretendia destruir as bases do sistema ditatorial, defendendo a continuação do colonialismo, a perduração da polícia política, a continuação da interdição da existência política do Partido Comunista Português e a manutenção em prisão de certos prisioneiros políticos, nomeadamente comunistas. Spínola, ao serviço que estava da classe que havia dominado durante o fascismo, logo se posiciona ideologicamente. Sucedem-se, assim, várias tentativas de desestabilização e de inversão do processo revolucionário, as quais tiveram um apoio activo do exterior, ou seja, das democracias burguesas ocidentais. No Verão de 1975, as forças contra-revolucionárias iniciam um processo de violência crescente, nomeadamente no Norte do país, atacando sedes e militantes do Partido Comunista.
É neste Verão – conhecido como « Verão Quente » – que sectores da oposição federal alemã exigem que o auxílio económico concedido pelo Governo alemão a Portugal seja invalidado. A intervenção estrangeira assumia, claramente, os seus objectivos políticos : travar e inverter o processo revolucionário iniciado a 25 de Abril de 1974. Frank Carlucci, nomeado embaixador dos Estados Unidos em Portugal, em Janeiro de 1975, admitiu, aliás, que todas as actividades da CIA no país, durante o Verão Quente de 1975, haviam sido coordenadas directamente por ele. Paralelamente, António de Spínola (que, após a tentativa contra-revolucionária de 11 de Março, se refugia da Espanha franquista) organiza um movimento terrorista armado. Não esqueçamos que não estava posta de parte uma intervenção da Nato em Portugal. O clima de polarização ideológica, as manipulações das forças contra-revolucionárias – que contavam com o apoio claro do Partido Socialista (PS), de Mário Soares, e do Partido Social Democrata (PSD) (hoje no governo português) -, o aproveitamento da desinformação e do caudilhismo, nomeadamente no Norte do país, a aliança das forças da burguesia nacional com o capital estrangeiro, a intervenção e apoio material da CIA, tudo isto fez com que a contra-revolução lograsse travar o caminho revolucionário, a 25 de Novembro de 1975.
Contudo, apesar de o movimento contra-revolucionário ter sido militarmente vencedor, o 25 de Novembro não impediu a aprovação de uma Constituição da República que contradizia a ordem socioeconómica do fascismo português, e que consagrava o necessário caminho socialista para a construção de uma verdadeira democracia em Portugal.
O que fica no Portugal atual de aquela revolução?
Fica, antes de mais, a certeza de que vale a pena lutar contra a barbárie e a opressão. O 25 de Abril foi um acto de emancipação social, pelo que a sua herança permanece não apenas na memória colectiva, mas também no plano sociopolítico. Por exemplo, a Constituição da República Portuguesa, aprovada em Abril de 1976, já depois da contra-revolução de 25 de Novembro, consagra um novo modelo político, económico e social, estabelecendo, entre outros, que «a organização económico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas». Apesar das sete revisões constitucionais sofridas e impostas pela classe dominante, de forma a atenuar o carácter socialista da Constituição, o seu carácter progressista perdura. Como perduram, igualmente, outras conquistas económicas, políticas e sociais que têm vindo a ser atacadas ostensivamente pela classe dominante, ao serviço que está do Capital nacional, em associação clara e vergonhosa com o capital estrangeiro.
Como pessoa que nem tinha nascido na altura, qual achas que é a ideia que têm as camadas mais novas sobre aquele episódio?
O grau de conhecimento da Revolução de Abril depende (como acontece, de resto, com todos os outros domínios de conhecimento) quer do meio em que se nasceu e cresceu, quer do que é veiculado nos estabelecimentos de ensino e/ou nos meios de comunicação de massas. Num processo de aprofundamento do capitalismo, o domínio ideológico da classe dominante passa por uma crescente manipulação e revisão da História, de forma a servir os seus interesses de classe. A Revolução de Abril é, desta forma, apresentada de uma forma ora romantizada ora simplista, omitindo-se quer o seu carácter emancipador e revolucionário, quer as posições ideológicas que ora se confrontaram. O fascismo, por exemplo, não é apresentado como tal – ou seja, um capitalismo que se baseava num terrorismo de estado ao serviço dos monopólios -, mas antes como o próprio fascismo se autointitulou: Estado Novo. O domínio ideológico estende-se, desta forma, ao domínio linguístico, esvaziando-se e atenuando-se o carácter ditatorial através de uma suavização da linguagem. As camadas mais jovens sofrem, por isso, a falta de informação, a manipulação, a revisão histórico-linguística, a imposição de um pensamento dominante, contrário ao interesse da grande maioria da população. O 25 de Abril é, por esta razão, por diversas vezes, mal conhecido ou mal interpretado. Apesar disso, muitos são também os jovens que assumem a luta de Abril como sua e a levam, hoje, para a rua, contra a supressão e o fim dos direitos que Abril conquistou.
O quê têm de real as comemorações institucionais em Portugal? Quer dizer, são comemorações sinceras, ou são apenas teatralizações com mais vontade de eliminar a verdadeira história e substitui-la por uma outra, mais inócua?
Como comunista, creio que Lénine pode ajudar-me a responder a esta questão. Com efeito, basta recorrer à definição da natureza de classe de um Estado: ou seja, um Estado é sempre o domínio de uma classe sobre outra. O domínio económico implica o domínio político, cultural, ideológico. No capitalismo, o domínio da classe dominante – a grande burguesia – estende-se, assim, à ideologia, pelo que o 25 de Abril é apresentado e comemorado de forma a que, como disse anteriormente, os interesses da classe dominante não sejam atacados, uma vez que quem ocupa os postos de poder – e, portanto, quem decide a forma e organização das comemorações – àquela se encontra submetida. Apesar disso, o grande desfile do 25 de Abril, que todos os anos se realiza em Lisboa e no Porto, continua a ser organizado por diferentes organizações políticas, sindicais, associativas e populares, imprimindo-lhe, por enquanto, o carácter popular, unitário e emancipador que há 40 anos uniu Povo e MFA.
Embora seja uma pergunta muito complexa para dares uma res- posta curta, o quê achas necessário para Portugal retomar o caminho de Abril e avançar face ao socialismo? Têm alguma possibilidade os movimentos espontâneos sem organização?
Sou comunista e, como tal, creio que apenas uma vanguarda organizada, tendo como força motriz o proletariado, em colaboração com outras clas- ses e camadas que nele revejam os seus interesses, pode levar adiante uma transformação revolucionária do modo de organização capitalista. Os movimentos espontâneos e desorganizados são a resposta que o sistema encontrou para, em momentos de crise e de retrocesso civilizacional, canalizar o descontentamento e a revolta da população, desviando-a de formas organizativas que constituam uma ameaça ao próprio sistema. A classe dominante, vendo os seus interesses de classe ameaçados, desvia, desta forma, o descontentamento da grande maioria dos trabalhadores, da grande maioria da população, para formas de organização efémeras e inócuas para os seus interesses. Pretende, assim, tentar afastar as diferentes classes e camadas trabalhadoras dos partidos de classe, revolucionários, que constituem, pela sua análise e acção, uma ameaça. Não creio que se possa retomar o caminho de Abril. Não podemos esquecer que, depois do 25 de Abril, houve a contra-revolução de 25 de Novembro, que impediu o avanço e aprofundamento da Revolução e que nos conduziu, actualmente, a um estádio mais avançado de desenvolvimento do capitalismo monopolista, em que o contexto e as condições socioeconómicas diferem daquelas que se apresentavam há 40 anos. Penso, por esta razão, que temos, sobretudo, de construir o caminho para o socialismo, reivindicando, é certo, as conquistas e progressos que Abril nos proporcionou, mas também não esquecendo que são os progressos e avanços conquistados no período revolucionário que ainda resistem que, hoje, estão sendo alvo de fortes ataques, colocando, sobretudo, na ordem do dia a necessária transformação revolucionária do sistema actual para a sua efectiva superação.
é da junção de levantamento militar e levantamento popular que nasce a Revolução¶