Do que falamos quando falamos de autodeterminaçom

Tergiversado às vezes no debate político, o conceito de autodeterminaçom possui, porém, um significado unívoco no direito internacional público. A autodeterminaçom é o direito dum povo a decidir por si mesmo a sua constituiçom em estado soberano. Nem mais nem, evi- dentemente, menos.

A Carta das Naçons Unidas de 1945 (artigos 1 e 55) reconheceu a todos os povos o direito a decidirem livremente o seu futuro. Foi a culminaçom dum processo com amplos precedentes no direito internacional consuetudinário. Pense-se nas declaraçons de independência das repúblicas de América, a começar pola estadounidense de 1776 (“When in the course of human events it becomes necessary for one people to dissolve its political bands with another…”) ou na criaçom de novos estados a partir do esfarelamento dos impérios austro-húngaro, otomano e russo no fim da I Guerra Mundial.

Desde 1900 até hoje, o exercício do direito de autodeterminaçom deu lugar a que o número de estados independentes se multiplicasse por quatro. Vinte deles som resultado da segregaçom dumha parte do território dum estado para se constituir num novo. Só na Europa, dêrom-se treze casos de independência por secessom durante o século passado e o que levamos deste: Noruega de Suécia (1905); Finlândia de Rússia (1917); a República de Irlanda do Reino Unido (1922); Islândia de Dinamarca (1944); Estónia, Letónia e Lituánia da URSS (1990-1991); Eslovénia, Croácia e Bósnia de Iugoslávia (1991); Eslováquia de Checoslováquia (1992); Montenegro da Uniom de Sérvia e Montenegro (2006) e Kosovo de Sérvia (2008).

O processo de autodeterminaçom e a criaçom do novo estado independente apresenta diferenças em cada caso –exercício dum direito reconhecido pola constituiçom do estado de origem, separaçom consensual, ou, a maioria das vezes, declaraçom unilateral de indepen- dência– mas a legitimaçom final do processo deve obedecer sempre à decisom maioritária do povo do novo estado, exprimida de forma democrática num referendum com as devidas garantias jurídicas.

Um setor da doutrina académica defendeu umha interpretaçom restritiva do direito de autodeterminaçom, de jeito que só seria aplicável aos processos de descolonizaçom. É certo que nesses casos temos um quadro jurídico nítido, conformado por numerosas resoluçons das Naçons Unidas, que nom existe com idênticas garantias para as iniciativas independentistas em contextos nom coloniais. Porém, isto nom pode significar a negaçom dum direito que é reconhecido com caráter universal a todos os povos. O Tribunal Internacional de Justiça da Haia, num relatório de 2004 sobre o muro erguido nos territórios palestinianos ocupados, resolveu que a autodeterminaçom é um direito erga omnes, que deve ser respeitado por todos os estados. O mesmo Tribunal, na importante resoluçom de 2010 sobre a declaraçom unilateral de independência de Kosovo, confirmou que nom existe norma internacional que proíba estas declaraçons, polo que, em geral, devem ser consideradas ajustadas a direito.

A imensa maioria das instituiçons e partidos políticos do Reino de Espanha –contrariamente ao que acontece noutros estados com movimentos independentistas, como o Canadá ou o Reino Unido– mantém umha atitude visceralmente contrária ao exercício do direito de autodeterminaçom polos povos galego, basco ou catalao. Proclama-se, por um lado, que o sujeito da soberania é o povo espanhol no seu conjunto. E afirma-se, por outro, que essa soberania está blindada polo texto do artigo 2 da Constituiçom, fundamentado na “indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles”.

O primeiro argumento é obviamente tautológico. Se os povos da Galiza, o País Basco ou Catalunha tivessem reconhecida a soberania, já seriam de iure independentes. A questom a resolver é se estes povos reúnem os requisitos para decidirem por si mesmos se querem ser independentes, ficando bem entendido que o direito internacional reconhece o direito de autodeterminaçom aos povos, nom aos estados, e a condiçom de povo está determinada por fatores como a história, a língua, as instituiçons sociais, jurídicas e económicas próprias e a vontade constante de manter umha identidade de seu.

O segundo argumento, de direito positivo, coloca-nos num conflito entre a legalidade constitucional espanhola e a vontade democrática dumha comunidade nacional. Este mesmo suposto teórico foi resolvido polo Tribunal Supremo de Canadá em 1998, ao reconhececer que umha maioria clara, obtida num referendum com todas as garantias democráticas, concederia plena legitimaçom a umha iniciativa secessionista do Québec e obrigaria o governo canadiano a negociar e resolver de comum acordo as sempre complexas condiçons da separaçom.

Aplicando esta doutrina, umha declaraçom unilateral de independência estaria justificada sempre que o governo espanhol impedisse umha consulta popular sobre a criaçom dum novo estado, ou bem se negasse a aceitar o seu resultado afirmativo. Em tal caso, a declaraçom de independência dotaria de existência política ao novo estado, pois este reuniria os critérios mínimos de populaçom permanente, território determinado e autoridade política, definidos na Convençom de Montevidéu sobre direitos e deveres dos estados de 1933. Este princípio, con- hecido como «teoria constitutiva do estado» foi ratificado polo relatório do comité Badinter, criado pola Comunidade Económica Europeia em 1991 para dar resposta às questons jurídicas levantadas pola fratura da antiga Iugoslávia. O relatório Badinter esclarece que a existência do estado é umha questom fática, sem que o reconhecimento internacional seja umha condiçom determinante da estatalidade.

Em resumo, a decisom sobre o seu futuro é um direito inalienável dos povos, ora dentro do estado em que estám integrados, ora separando- se para formar um novo estado. Em tal caso, a declaraçom de independência nom produz os seus efeitos dentro do ordenamento jurídico previamente existente, senom que cria umha nova legalidade, totalmente legítima aos olhos do direito internacional.

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