Hoje, em Estados considerados democráticos, o princípio de separaçom de poderes é concibido mais como um ensaio de poder e influência do que como um dos princípios fundamentais que caracterizaria as verdadeiras democracias. Nestes Estados existe um parlamento, um governo e uns juízes. Através de eleiçons, é o povo que escolhe os parlamentários que irám designar um presidente com a misom de formar governo. Através dum sistema de selecçom — por sinal, anacrónico —, o poder judicial nomeia também os seus próprios agentes de governo, mas os magistrados das mais altas instáncias judiciais dependem do critério político, que é tanto como dizer que dependem da correlaçom das forças parlamentares. Por outras palavras: na prática, os três poderes clássicos convergem no plano político, de tal forma que o poder no seu conjunto (parlamentar, de governo e judicial) depende dumhas maiorias eleitorais que tenhem os seus próprios mecanismos de perpetuaçom — incluída a alternáncia pactuada entre umha série mais ou menos reduzida de forças dispostas a conservarem a estabilidade, o que significa dispostas a evitarem ou limitarem qualquer mudança de profundidade, real.
Há um motivo essencial para que isto seja assim, e que, aliás, explica a resistência destes poderes às mudanças que por lógica deveriam aparecer quando, eventualmente, a correlaçom de forças muda em direcçom a alternativas transformadoras ou revolucionárias. Porque, de facto, neste tipo de Estados existe também um poder económico — hoje essencialmente financeiro —, um poder oculto e opaco, mas de transcendental influência, que também joga a consolidar o status e a formular umha institucionalidade estável e favorável aos seus interesses. O poder económico, pois, respalda os partidos maioritários em troca dumha contraprestaçom em forma de lucro à custa do bem comum.
A influência do poder económico sobre o direito é tal que deforma mesmo os seus princípios básicos e chega a avançar na privatizaçom das normas jurídicas. Assim, o direito público é desestabilizado ao ter que coexistir com outro direito ditado por agentes alheios à vontade popular. O Banco Mundial, o FMI ou o Banco Central Europeu e, no marco do TTIP e doutros tratados semelhantes, mesmo tribunais empresariais (sic) projectam um direito criado ad hoc para proteger os intereses do grande capital. Em resumo, no ámbito da globalizaçom neoliberal, a lei e as relaçons económicas vem-se submetidas a um regime de pactos assimétricos que vam suprimindo as normas parlamentares gerais, fragmentando-as e retorcendo-as a favor das classes dominantes. Deste modo é que se consegue a anulaçom dos procedimentos jurídicos, a deslocaçom da separaçom de poderes e, em consequência, o detrimento da soberania dos povos e naçons.
Sob esta máxima, o direito vai-se transformando em mais umha ferramenta de submissom e opressom das maiorias sociais. O Estado espanhol mostra, nesse sentido, inúmeros exemplos, desde a eliminaçom da justiça universal e a perseguiçom judicial para terminar com a dissidência política — o cenário preferido por quem assume a visom homogeneizadora e filofascista do Estado — à reformulaçom da legislaçom laboral em direçom à sua supressom definitiva — o cenário preferido polo grande capital.
À vez que estes mecanismos mercantilistas do direito se vam consolidando, é a cidadania a que fica afastada de qualquer exercício real de poder. Esta utilizaçom das normas jurídicas ao serviço dos interesses particulares — e mesmo individuais — supom considerar a democracia como apenas umha palavra de ordem já esvaziada de significado, e a sua base legal como mais umha mercadoria à venda numha praça, onde os direitos humanos som substituídos polos benefícios empresariais.
Porém, a consequência directa disto todo, desta instrumentalizaçom e desta mercantilizaçom nom se limita apenas ao direito como prática do poder judicial, como também afecta aos direitos como marco exigível de referência: direito à vivenda, direito à educaçom, direito à saúde, direito de autodeterminaçom e outros direitos colectivos e dos povos. Digamos que a esta tendência a converter o direito em produto de mercado há ainda que engadir a visom subsidiária que se tem, de maneira específica, dos direitos colectivos. Nesse marco, esses direitos colectivos, que foram conquistados sem grande entusiasmo por parte dos sectores dominantes, ficam relegados a umha posiçom secundária numha hierarquia de garantias públicas com umha protecçom já fraca por si.
Completada a transformaçom, já nom é só que sem um direito que assegure o trabalho, por exemplo, as bases para umha democracia consolidada e com respeito polos direitos colectivos se vejam comprometidas; é que, sob a premmisa de que nom há recursos públicos, o que se fai é abrir a porta à iniciativa privada, que os oferece como mercadoria acessível apenas para quem puder pagá-los. O que significa que a cidadania deixa de ser titular de direitos para se converter em consumidora de ben ou serviços mercantis. Esse questionamento aponta face a umha descomposiçom do sistema de direito e de direitos: as normas privadas imponhem-se sobre os direitos humanos.
Ademais de para destruir direitos laborais e sociais, a crise, empurrada polo poder económico e baixo a proteçom deste poder judicial orientado é empregada para atacar movimentos sociais que se oponham a estas regras. O objectivo nom é outro que a desagregaçom do colectivo até ao nível dos indivíduos que, isolados, nem sequer igualam o poder colectivo capaz de exigir os seus interesses sociais e criar os marcos em que podam chegar a se efectivizar. Por isso, o reto é claro: revrerter esta involuçom, resultado da anulaçom de facto da separaçom de poderes, e recuperar a fase ofensiva para materializar novos avanços. E isso requer recuperar e reconstruir a democracia e restituir a funçom originária do poder judicial. Doutro modo será impossível.